quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Azul

Do momento em que o beijei pela primeira vez, eu já sabia que o abandonaria.
Ele me distraiu algumas vezes, como quando o vi pela primeira vez em um terno azul e estacionei por certo tempo imaginando como seria vê-lo no terno azul diante de todos os nossos amigos e famílias.
Na verdade, eu sabia que nosso jogo era maior que nós desde o início. Para mim, ele era calor e um bom símbolo da minha liberdade. Para ele, eu era troféu, a perfeita manic pixie dream girl.
Apaixonado, não pôde mais ser liberdade. Anônima, deixei de ser troféu.
Numa de nossas primeiras conversas de bar, zombei dos homens que, ao farejarem-se abandonados, antecipam a deixa por iniciativa própria. Ele disse que incomodou, mas riu. Era nosso destino antes mesmo do primeiro beijo.
No dia que ele foi embora, no apartamento vazio assisti ao último episódio da série que costumávamos ver juntos. Eu já estava vendo sozinha há algum tempo.

sábado, 30 de maio de 2020

Enterrado

Nunca quis dinheiro. Nunca quis conforto eterno. Inda que o intento fosse mesmo descansar em paz…
Minha irmã escreveu antes de mim. Meu irmão venceu antes de mim. Isso me importa tão pouco… Muito mais marcante foi aquele abraço que pedi e nunca ganhei.
A morte é só pó. Ninguém vai cavar seu túmulo para encontrar ouro nos anseios que nunca desembolsou sobre o solo. Ou desenterra seu coração agora, ou deixa o podre lhe comer o que cultivou de bom e ruim.
Ninguém quer morrer antes de poder falar.

Estocolmo

Passou tempo demais fotografando as janelas de sua vida com os olhos. Abominou as que tinham barras, sonhou com as que viu noturnas, criou histórias para cada luz que a vista alcançou e sentiu-se confortável no sentimento de anonimato que a multidão de luzes lhe trazia. Mas sempre quadrada a visão. Pois presa. Distante.
Da janela de hoje não vê nada além do que já é seu – e por isso não mais bonito. O anonimato, energia fria que preenche seus pulmões, precisa ser encontrado em outro lugar.
Com certeza há de existir, mas não realmente conhece quem se alimente de frieza e solidão como ela mesma. Cavalos de Troia que a vida lhe deu, hoje não consegue mais viver sem essas duas desgraças, como que numa Síndrome de Estocolmo sentimental. Ama o que lhe amaldiçoou um dia.
O hábito de viver o futuro antes do presente, contudo, faz com que passe os dias sedenta pelo momento em que a janela seja ampla, traga luz em dia e noite, não tenha barras e possa, em fim, também ser porta.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Mariposas

Seduz pela pele, pois de encantos é vazia. Carece sempre cheirar bem e aparentar toques aveludados porque apenas a voz e a coleção de palavras que detém não prendem a atenção dos que buscam profundez para além da adolescência.
Arrisquei ser plateia por algum tempo, mas é que paciência nunca foi virtude minha – e esse não é tampouco o tipo de cena para a qual pago qualquer preço para assistir. Afinal, o sexo dela costumeiramente vem de graça.
Assim como Cissa, obviamente restolho de angústias genéricas de uma família quebrada. Das dores que geralmente avultam o caráter, fica a exceção protegida da hipnose resulta de quando volumosos em verdade são os beiços.
Sedutora. Encantadora, jamais.
Não tem borboletas no estômago, tem mariposas. Empoeirada, velha nos truques. Coração umbroso abrigando vinganças juvenis a quem acidentalmente lhe ameace a hegemonia da beleza.
Recolho-me a minha pele demasiadamente machucada e índole para além do questionável. Não tenho nada que ver com isso. Mas também não preciso pagar pelo ingresso.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Na Vitrine

Gosto de colecionar pessoas. Umas deixo na vitrine, outras no porão.
O Vigarista foi quem me acordou. Um olhar e a anestesia perdia efeito. Sentir o sangue quente foi o que lhe fez valer.
O Torturador, na dor, levou-me a ver estrelas. Tragédias geralmente rendem cenas bonitas (e admiráveis também eram os tons de roxo). Insistiu em se machucar por mim, mas quem perdeu dois terços de si fui eu.
A Otimista me apresentou ao orgulho enquanto eu a carregava nas costas. Os olhos no espelho nunca mais foram os mesmos. E, mesmo na vitrine não havendo espaço para ela, arrependo-me de tê-la vendido tão barato.
O Sonhador me resgatou de poços em que nem eu mesma enxergava ter caído. Sonhou acordado sem ouvir as fantasias em mim e ficou para trás quando me assistiu tornarem reais os sonhos meus.
A Chantagista foi quem plantou ilusões em mim e também as inexplicáveis dores de peito. Meu maior triunfo nessa peça, contudo, é que carrego os olhos dela em mim e, assim, não existo por um segundo sequer sem enxergar beleza. Essa reside na vitrine.
O Prático gritou seu amor por mim quando eu ainda era muito jovem e então se fechou num copo de bar, onde fingia não chorar. Seu lugar é na vitrine também, pois foi quem acorrentou meus pés ao chão para que não flutuasse sem rumo em ilusões.
A Romântica chorou profusamente por muitos anos ao se olhar no espelho. Buscou tanto o amor fora de casa, que até hoje por vezes ainda se esquece de quão vermelhos são também os próprios lábios. Essa peça só é capaz de ser vista quando observada do lado oposto do vidro.
Guardo alguns exemplares com mais ou menos valor nessas prateleiras empoeiradas, mas raramente esquecidas. A verdade é que pouco se mexe, mas um dia tudo acaba na vitrine.