sexta-feira, 20 de maio de 2016

Senhora na Janela

Toda tarde, existe um de meus repetitivos pousos à janela que sempre se depara com a figura de uma senhora num dos prédios ao fundo do meu. Ela está sempre a fumar, sempre em mesmo horário, sempre contemplando a rua. Já lhe sorri algumas vezes, mas a distância é considerável e não acredito que eu seja mais interessante que todo o universo que ela tem a observar.
Há algo de intrigante no saborear de suas tragadas diárias. Muito menos nelas em si, que na minudência com que observa a rua. Não é uma senhora jovem, nem velha. Tem um cabelo amarelo-ovo emplumado que lhe retrocede algumas décadas no tempo. Mas nada disso convém, pois o que me importa apenas é saber o que rebenta das reflexões de sua cabeça.

E, nisso, percebi nascida em mim o capricho de gravar-me naquela mulher.

Uma vez deitei-me com um rapaz que era apaixonado em saber dos outros. Tudo o que queria, perguntava. Era uma verdadeira esponja de saberes – inda que também amasse falar de si. Ele insistia que eu carecia de egoísmo. Não num sentido perverso, é claro, mas no intento de pensar menos nos outros e mais em mim. Um individualismo do bem. Do que não tiro parte de seu mérito, aliás.
Ocorre que não é nato em mim o propósito clarividente de absorver das pessoas o quanto têm a me doar. Meus poucos e arrastados anos foram feitos de absorções casuais, como que acessórias a um laço maior estabelecido, antes, por mim. O que sei, de fato, é imprimir-me em todo canto que passo. Canto, coração, alma. Sei que deixo sempre vestígios (ou cicatrizes) de mim. Prefiro deixar-me em outrem a, antes, tomá-los de si.

Sobre a senhora da janela, quero conhecer suas notas mentais mais latentes; porquanto, sabendo, permitir que também ela saiba sobre mim.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Aquela Pouco Constante

Vividamente se lembrava de ter sido doce um dia. Ter sido. Ter-se ido.
A arritmia de um peito aberto era redescoberta. Melhor: relembrada. Mas nada como o toque especial de um amor maior para a receita de um dramalhão latino barato.
Gastava lágrimas sem medir limites. Sua cota pessoal já devia estar gasta há pelo menos dois amores atrás.
Ar. Faltava-lhe o ar.
Boicotaram, então, a si mesmos. Em transbordando amor, afogaram seus respeitos.
Uma utopia que transcende a humanidade. Falha até para si mesma. Carregou os cacos.
Não que um corte a mais fizesse lá tanta diferença.
De nada adiantava colar o peito em lembranças lindas. A escara final é a que dita o sangramento.
Ainda assim, ensaiava sua velha conhecida tranquilidade dolorida, fruto da força que, não à toa, foi treinada a ter.