quinta-feira, 27 de junho de 2013

Leite Derramado

No fogão, o leite anunciava fervura, ainda sem transbordar, enquanto a luz da manhã envelhecida cortava as frestas de algumas persianas, queimando os olhos do casal nu deitado sobre os colchões descobertos no chão da sala.
De bruços e com a boca parcialmente abafada pelos travesseiros, Antonieta divagou sobre como os cinegrafistas enchiam seus filmes de cenas de sexo e nudez, na crença de que assim seriam obras mais sérias, mais reais, mais adultas, como se uma mera elevação de censura fizesse brotar maturidade – profundidade.
E já que no tema sexo, ele aproveitou para reforçar, pela terceira vez naquele mês, que era só o que queria com ela, ao menos por ora, que estava bom assim, do jeito que estava. Um aviso anti-quebra de coração, que estava mais para desencargo de culpa em verdade.
Ela rolou um pouco o corpo, preguiçosamente, e com o sol matinal a clarear-lhe agora o sorriso puro, lembrou-lhe de que ela também não tinha maiores interesses que aproveitar o presente. Linda no limite que lhe era possível, convenceu-o. Uma vez bonito, sempre fica mais crível.
Ele se levantou pela segunda vez naquela manhã, lembrando-a do homúnculo que era. Ou pelo menos parecia-lhe ainda mais naquele momento. No banheiro no cômodo logo ao lado, ligou o chuveiro morno, esquecendo-se de si e dela debaixo d’água.
Voltou para a sala: lençóis revirados, colchões vazios, porta aberta. O leite transbordara.