quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Amor em Marcas

Está na mancha de vinho, que ainda não saiu do colchão dele.
Está nos centímetros de cada canto daquele apartamento, que já guardou tantas memórias.
Está no perfume, que é o único doce que ainda não se amargou.
Está no toque aveludado, que vai deixar saudade.
Está nas sardas de seu corpo, que quebram a palidez em mínimos pontos.

As marcas do amor dela não mais lhe rasgam a carne, mas hoje são de cortar o coração.
As marcas do amor dele estarão para sempre nela, como as cicatrizes de que um adulto se orgulha, por serem prova de uma infância feliz.
São marcas definitivas, isso é certeza.
São marcas de um tempo bom.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Abscissa

Cissa era aquela moça que a gente encontra sempre que vai a uma festa boa, atarracada a uma turma badalada, não necessariamente conhecida, mas com certeza divertida.
Era a beleza natural de uma genética abençoada, misturada com uma extroversão plantada e enraizada à força por ela mesma. Seduzia e hipnotizava, com um sempre-ter-o-que-dizer tão natural que fazia com que parecesse contar um par a mais de décadas, escondidas naquelas coxas brancas alisadas por tantos.
Não tinha o aspecto sujo que pressupõem ter as pessoas que exaurem seus pecados na rua. Não era isso que era – embora fosse o que levasse em seu âmago. Tinha, em verdade, o doce dos perfumes caros, a sensualidade nobre que o sucesso do pai lhe era capaz de comprar.
Fez sexo com amor e sem amor o quanto quis e pode, sem nunca se queimar em qualquer fagulha de culpa, remorso ou arrependimento. Bebeu venenos lentos que poucos ousariam beber tão amiúde. Usou o corpo como única ponte que tinha para a felicidade. Exorbitou sentidos.
Cissa era agora, prazer e euforia como ninguém que eu haveria de conhecer.
Seus lábios não tinham medo de pronunciar o azedo. Faziam-no como se a ninguém chocassem. Quem ficava mais, porém, ouvia crônicas de mais um lar arruinado, sempre da maneira simuladamente natural que somente Cissa era capaz de fazer.
Em meio aos cacos da família moderna, ela se criou. Foi obrigada a aprender a se fazer mulher sem sequer acreditar que realmente o era.
Seu magnetismo também me seduziu. Sua segurança era de uma fachada tão crível, que cheguei a desejar ter também uma vida de extremos. Caí em mim quando presenciei algumas de suas explosões desesperadas, que extravasavam a raiva de ter sido sempre tão abandonada e esquecida.
Não havia de ser diferente. Seria injusto não dar a Cissa o direito de se inflamar. Não estivesse à época tão verde, eu poderia ter compreendido tudo isso mais cedo…
Lembro de tê-la visto há algum tempo no banheiro de um bar. Estava diante do espelho e reconheceu mais o meu rosto que o que estava refletido. Cumprimentou com um sorriso mascarado e a antiga piscada lenta que usava quando tentava ser irônica, mas que me causou na verdade um pouco de nostalgia. E pena.
O passar do tempo não permitiu que se curasse. Apenas afiou seu potencial de externar um pouco mais a sua cólera, ferindo a confiança daqueles que se aproximavam o bastante para enxergar seu íntimo desprotegido.
Perdeu alguns vícios, ganhou outros. Mas continuou a rotineiramente se lambuzar dos fluidos pecaminosos que ainda eram capazes de acobertar seu andar de menina e frustrações de mulher.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Humanóides

Aos poucos fui descobrindo os espécimes que me atraem mais. Os mais interessantes a meus olhos e pelos quais, subconscientemente, despertava apreço sincero. Havia um segredo, afinal…
Humanóides, porque perderam parte de sua essência animal e mundana naqueles aspectos de suas singularidades. O maior triunfo, a capacidade de me incomodarem com qualquer forma de caráter que valorizo muito. E, por isso, permitirem-me tanta estima.
Tirar-me da zona de conforto, incomodar-me por ser tão admirável, dá vontade e, inclusive, oportunidade para que eu também o seja. Só assim para despertar-me amor de verdade, que permanece, que se fortalece.
Por vezes dei as mãos com o que provocava mais uma sensação de doação que recebimento, ainda que um, sem o outro, inexista. Não eram humanóides, eram apenas humanos. Mesmo assim, renderam-me laços fortes sempre que com verdadeira ternura se envolviam. Ternura que compensava.
Noutros momentos tropecei em humanos que, além de o serem, faziam questão de banhar-se cotidianamente no mundano vulgar. Endurecendo o que já era duro – calejando. Respiro com alívio por ver que passou e que fui capaz de fazer passar.
Sou incapaz de viver sem sugar um pouco da essência do que está a meu redor. Em razão disso, preciso me policiar para ter certeza de que estou próxima do que me leva além, do que emana o bem.