terça-feira, 29 de outubro de 2019

Mariposas

Seduz pela pele, pois de encantos é vazia. Carece sempre cheirar bem e aparentar toques aveludados porque apenas a voz e a coleção de palavras que detém não prendem a atenção dos que buscam profundez para além da adolescência.
Arrisquei ser plateia por algum tempo, mas é que paciência nunca foi virtude minha – e esse não é tampouco o tipo de cena para a qual pago qualquer preço para assistir. Afinal, o sexo dela costumeiramente vem de graça.
Assim como Cissa, obviamente restolho de angústias genéricas de uma família quebrada. Das dores que geralmente avultam o caráter, fica a exceção protegida da hipnose resulta de quando volumosos em verdade são os beiços.
Sedutora. Encantadora, jamais.
Não tem borboletas no estômago, tem mariposas. Empoeirada, velha nos truques. Coração umbroso abrigando vinganças juvenis a quem acidentalmente lhe ameace a hegemonia da beleza.
Recolho-me a minha pele demasiadamente machucada e índole para além do questionável. Não tenho nada que ver com isso. Mas também não preciso pagar pelo ingresso.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Na Vitrine

Gosto de colecionar pessoas. Umas deixo na vitrine, outras no porão.
O Vigarista foi quem me acordou. Um olhar e a anestesia perdia efeito. Sentir o sangue quente foi o que lhe fez valer.
O Torturador, na dor, levou-me a ver estrelas. Tragédias geralmente rendem cenas bonitas (e admiráveis também eram os tons de roxo). Insistiu em se machucar por mim, mas quem perdeu dois terços de si fui eu.
A Otimista me apresentou ao orgulho enquanto eu a carregava nas costas. Os olhos no espelho nunca mais foram os mesmos. E, mesmo na vitrine não havendo espaço para ela, arrependo-me de tê-la vendido tão barato.
O Sonhador me resgatou de poços em que nem eu mesma enxergava ter caído. Sonhou acordado sem ouvir as fantasias em mim e ficou para trás quando me assistiu tornarem reais os sonhos meus.
A Chantagista foi quem plantou ilusões em mim e também as inexplicáveis dores de peito. Meu maior triunfo nessa peça, contudo, é que carrego os olhos dela em mim e, assim, não existo por um segundo sequer sem enxergar beleza. Essa reside na vitrine.
O Prático gritou seu amor por mim quando eu ainda era muito jovem e então se fechou num copo de bar, onde fingia não chorar. Seu lugar é na vitrine também, pois foi quem acorrentou meus pés ao chão para que não flutuasse sem rumo em ilusões.
A Romântica chorou profusamente por muitos anos ao se olhar no espelho. Buscou tanto o amor fora de casa, que até hoje por vezes ainda se esquece de quão vermelhos são também os próprios lábios. Essa peça só é capaz de ser vista quando observada do lado oposto do vidro.
Guardo alguns exemplares com mais ou menos valor nessas prateleiras empoeiradas, mas raramente esquecidas. A verdade é que pouco se mexe, mas um dia tudo acaba na vitrine.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

À Deriva

– A pior coisa que se pode fazer a alguém é sequestrar-lhe a juventude.
– Ninguém é capaz de sequestrar alguém de si mesmo. O Tempo está constantemente deixando presentes à sua porta… se não abre os pacotes, isso é sempre uma escolha sua.
– A lama pode ser traiçoeira mesmo em territórios familiares.
– Se não tivesse me afogado em tantos lamaceiros, não seriam tantos também os terrenos conhecidos. Tampouco conheceria eu mesma meu próprio fôlego.
– Conhecimento não salva o náufrago à deriva quando já é tarde demais. E só está vivo quem, talvez por pouco, ainda não ficou tempo o suficiente para saber quando se torna tarde.
– É somente na ponta dos pés, com apenas o rosto acima da água, que expandimos nossos horizontes e encontramos mais respostas. Avistando a crista da próxima onda.
– Percebe que lhe são necessárias muito mais palavras para se convencer, sim?
– Sim.

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Fogo

Não havia raio de sol que aquecesse aquele beijo, inda que o amor residindo ali estivesse em sua forma mais pura. Era cristalizado. Muito mais a decisão de um acordo que um incêndio provocado pela fagulha de um cigarro irresponsavelmente esquecido à beira de um palheiro.

Mas entendo o fogo como uma das coisas mais bonitas que conheço da vida. É capaz de engolir tudo ao meu redor, arder-me inteira, expondo a carne viva. Mas ao menos estará viva.

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Abriu o convite como bem sabia fazer: sutil e certeira. Era especialista em se fazer entender tão claro quanto fosse preciso, sem contudo precisar recitar letra por letra. Tão leve quanto a pronúncia espanhola: a língua quase não toca o céu da boca. O peso de uma pluma, a mensagem tão inquieta quanto uma labareda.

domingo, 14 de julho de 2019

Mariana

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mariana, cê não tá entendendo o quanto que essa vida é louca, mariana. tem bolha na minha mão e ainda assim eu continuo trabalhando com mais força. mas eu não ligo, não, sabe. eu acho legal, até. não o machucado, né. mas a coisa em si. eu vi tanta coisa que nem sei se consigo te contar. mas e você, como é que tá? ainda tá beijando aquele moço? eu gostei dele, parece ser um bom pai. falando em moço, apareceu um por aí. eu não sei o que acho dele e tô tentando não achar. mas todo dia ele sequestra minha atenção e eu tô deixando... num acho que tenha mal algum que eu não vivi. mas eu sei que não é verdade. ontem eu chorei, mas não foi por causa dele, é que eu tava pensando na vida e o céu daqui é muito colorido. cê também tem chorado ainda? eu não quero mais te ver chorar daquele jeito. sua irmã vai melhorar, você vai ver. mas, mariana, eu queria tanto que cê fosse embora também! pega tudo, sabe, se eu fosse você, eu ia. chama o moço. eu quero tanto te ver ser feliz... dava tudo pra gente sentar num boteco agora! duas cervejas e um pratinho de batata. eu nunca vou te esquecer, sabia. você é diferente de mim, e esquisita às vezes, mas eu sei que cê merece o tamanho do mundo de felicidade. eu não ia aguentar metade das brigas que cê já enfrentou. e o trabalho? ainda tão colocando canela no café? tomara que cê ache algo melhor. acho que eu nunca te disse, mas seu abraço me lembra o de mamãe. e eu tô precisando dele, sabe. tô precisando de você. me diz como é que eu vou embora desse jeito? eu vou sofrer demais. mas hoje eu quase vi isso de perto. menina, deu um medo! mas é aquela coisa, a vida é muito doida. muito doida, mariana! lembrei daquela música que a gente dança. nossa, tô doida pra sair pra dançar. eu sei que cê não gosta, mas vai ser bom ir com os meninos quando eu voltar. aí a gente toma uma cerveja! agora eu preciso voltar. mas foi ótimo falar com você, viu. não me abandona, não. eu sei que cê tem medo disso, mas eu também tô sempre aqui pra você. eu te cuido, mas cê se cuida mais, mariana!

terça-feira, 4 de junho de 2019

Deserto

Tinha um espelho envelhecido com aquela moldura rococó filmando apenas o lado esquerdo do rosto. Mesmo assim não olhava para si. Quanto mais o tempo preenchia, menos precisava olhar para o lado, evitando enxergar o vazio que era sua única companhia.
Evitando a verdade de que ninguém além de si é capaz de tapar o buraco de uma solidão que é só sua.
E se vivesse para sempre como a única companhia que lhe coubesse? Seria quem escolheria para ter perto de si?
Não pôde mais evitar. Era tempo de reconhecer os próprios olhos. Dirigiu-os ao espelho como quem se prepara para flertar com a Medusa.
Agora o rosto era visto por inteiro.