terça-feira, 17 de setembro de 2019

Na Vitrine

Gosto de colecionar pessoas. Umas deixo na vitrine, outras no porão.
O Vigarista foi quem me acordou. Um olhar e a anestesia perdia efeito. Sentir o sangue quente foi o que lhe fez valer.
O Torturador, na dor, levou-me a ver estrelas. Tragédias geralmente rendem cenas bonitas (e admiráveis também eram os tons de roxo). Insistiu em se machucar por mim, mas quem perdeu dois terços de si fui eu.
A Otimista me apresentou ao orgulho enquanto eu a carregava nas costas. Os olhos no espelho nunca mais foram os mesmos. E, mesmo na vitrine não havendo espaço para ela, arrependo-me de tê-la vendido tão barato.
O Sonhador me resgatou de poços em que nem eu mesma enxergava ter caído. Sonhou acordado sem ouvir as fantasias em mim e ficou para trás quando me assistiu tornarem reais os sonhos meus.
A Chantagista foi quem plantou ilusões em mim e também as inexplicáveis dores de peito. Meu maior triunfo nessa peça, contudo, é que carrego os olhos dela em mim e, assim, não existo por um segundo sequer sem enxergar beleza. Essa reside na vitrine.
O Prático gritou seu amor por mim quando eu ainda era muito jovem e então se fechou num copo de bar, onde fingia não chorar. Seu lugar é na vitrine também, pois foi quem acorrentou meus pés ao chão para que não flutuasse sem rumo em ilusões.
A Romântica chorou profusamente por muitos anos ao se olhar no espelho. Buscou tanto o amor fora de casa, que até hoje por vezes ainda se esquece de quão vermelhos são também os próprios lábios. Essa peça só é capaz de ser vista quando observada do lado oposto do vidro.
Guardo alguns exemplares com mais ou menos valor nessas prateleiras empoeiradas, mas raramente esquecidas. A verdade é que pouco se mexe, mas um dia tudo acaba na vitrine.