domingo, 20 de março de 2011

O Grudento

 A tarde chegava ao fim num incomum dia nublado de fim de verão. Eram duas moças apenas. Conversando, rindo, empolgando-se com as programações da viagem que estavam para fazer. Até que, numa fração de segundo, não eram mais somente duas: eis que surge um terceiro elemento – maldito elemento!
Enquanto esperavam, sentadas no carro, por uma outra amiga, tocou o celular da jovem que estava no banco do carona. Inacreditável. Mal se passaram duas horas da mensagem anunciando que ligaria “mais tarde”, e lá estava ele.
– É desespero. Você precisa aprender a sentir o cheiro dessas coisas. – disse a motorista.
Procurando absorver toda a paciência que flutuava ao redor da amiga que não era atingida por seus problemas, a dona do celular simplesmente silenciou o telefone e deixou a situação de molho por mais algumas horas.
Cento e quinze minutos mais tarde, cada moça já em sua respectiva casa, vibra novamente o celular. Assim que a ligação cai por ninguém tê-la atendido, soa o alerta de uma nova mensagem de texto.
E, no meio de sua rotina atribulada e da correria em que estava imersa para não chegar atrasada como de costume, parou.
Abismada, pôs-se a analisá-lo à procura de qualquer indício de ansiedade patológica que pudesse ter despercebido no pouco contato que tiveram.
Não havia nada.
Apesar da falta de atração que ela sentia, reconhecia nele características que davam a ilusão de ao menos algum vestígio de independência e autossuficiência.
Ele era um qualquer, conhecido dessas festas em que a maior atração é o álcool em abundância. Num lance de sorte, enquanto ela estava embriagada demais para passar o número falso que sempre passava, ele conseguiu seu telefone e não parou mais de ligar.
Oito anos de vantagem na identidade dele, dez anos de vantagem na maturidade dela.
E só o que ele conseguia fazer com toda a “atenção” que dispensava a ela (disfarce para “insistência”) era disparar a diferença no placar. Na pontuação dela, é claro.
“Desinteressantíssimo”, era só o que ela pensava.
Pior que um homem que não telefona quando deve é um que telefona quando jamais deveria.
O conselho de outra amiga:
– Fique feliz. Se um cara tão aleatório acaba de te conhecer e fica louco com você desse jeito… gata, no mínimo você é muito gostosa.
Não era uma recomendação suficientemente aplicável, mas era pelo menos uma leve massageada no ego. E isso (quase) nunca é demais.
Rejeitadas as várias ligações, havia sempre uma mensagem de texto à espera, implorando o retorno do telefonema.
“Haja falta de amor-próprio!”
E tudo que ela conseguia pensar a partir daquela epifania era como jamais conseguiria se doar a alguém que não tem vida própria. Ou pelo menos parece não fazer questão de ter. Seu último desejo era ser o centro incondicional da vida de alguém.
Como num clique, lembrou-se do atraso, mas ainda arranjou tempo para se perfumar. Antes de bater a porta do quarto, sentiu mais uma vez o vibrar do celular dentro da bolsa.
Fechou a porta, correu escada abaixo e o máximo que o desprezo lhe permitiu pensar foi:
“Livrai-me de todo o mal, amém.”

2 comentários:

  1. Oiii!! Dei uma passada aqui pra conferir seu blog, adorei! não ando postando muito no meu pq tô bem sem tempo, mas sempre q ´da eu coloco alguma coisinha lá =) muito bom teu texto!! vou te seguir tb :)

    ResponderExcluir